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Isolacionismo Tóxico

Lier Pires Ferreira, Phd em Direito.

Professor do Ibmec e do CP2

Publicado em 1995, Ensaio sobre a cegueira é a obra prima do português José Saramago. Premiado com o Nobel de Literatura, o romance conta a história de uma cegueira contagiante, branco-leitosa, que de início acomete um homem que estava ao volante, parado no sinal. Surpreso pela súbita perda da visão, o “primeiro cego” vai ao oftalmologista, que também resta infectado. Em uma espiral ascendente, muitas outras pessoas são acometidas pelo “mal branco”, evidenciando um surto epidêmico que se alastra rapidamente. Para contê-lo, o governo encerra os infectados nas dependências de um antigo manicômio. Durante a quarentena, com recursos escassos, os reclusos perdem seus parâmetros socioeducacionais, passando a agir por instintos e pulsões, alheios à razão e a qualquer padrão ético ou moral. Sob o manto do egoísmo predatório – violento e mortal -, as barbáries se sucedem até que, após um incêndio, a mulher do oftalmologista, a única a não ser contaminada, mas que fingira ser cega para acompanhar o marido na quarentena, se dá conta de que seus carcereiros não estão mais em seus postos e, ao sair da clausura, depara-se com um cenário trágico e inesperado: toda a cidade está destruída, pois seus cidadãos, igualmente vitimados pela cegueira que tentaram inutilmente confinar, também perderam os limites civilizacionais que os tornavam (minimamente) humanos.

Ensaio sobre a cegueira não é uma obra profética, mas ajuda a refletir sobre o tempo presente. Assombrado pelo coronavírus, o mundo tem a rara oportunidade de pensar e agir alternativamente, priorizando o humano sobre a sana mesquinha do dinheiro e do poder. Diante de uma ameaça global, seria possível superar a ordem estadocêntrica e ultraliberal, exauriente, na qual os seres humanos são meros dígitos ou fatores de produção, em favor de uma sociedade cooperativa, ecológica e ética, que valorize a vida em todas as suas expressões. Mas essa rara oportunidade está sendo desperdiçada. Em meio ao pânico e à contabilidade midiática das perdas humanas e econômicas, as maiores potências do planeta, EUA e China, acirram suas disputas hegemônicas, responsabilizando-se mutuamente pela primeira pandemia verdadeiramente global do século XXI. Enquanto a África e a América Latina, espoliadas, patinam em suas contradições e dependências históricas, e as clivagens regionais seguem triunfantes em outras latitudes (vide as tensões entre Rússia e Arábia Saudita na OPEP); a Europa e as organizações internacionais, em particular as Nações Unidas, revelam todo seu nanismo, incapazes de liderar qualquer reação articulada ao vírus. Dessa forma, vive-se um isolacionismo tóxico, abléptico, sob a égide do “cada um por si”, no qual os estados digladiam-se, o racismo e a xenofobia avançam, e os grandes laboratórios concorrem em busca de uma “cura” capaz de turbinar suas patentes e abarrotar seus cofres.

O mesmo isolacionismo tóxico marca o Brasil no momento em que o coronavírus ingressa no cotidiano nacional. Diante do número crescente de mortos e infectados (em 26/03 o G1 informa 77 óbitos e 2.915 contaminados), era de se esperar o passo firme e sereno do presidente da república. Mas isso não acontece. Pressionado pelo mercado, uma “entidade” com muitos “cavalos”, Bolsonaro empilha demonstrações de tolice. Primeiro, recebe manifestantes pró-governo no momento em que, sob suspeita de infecção, deveria estar em quarentena. Depois, apartado da comunidade científica que tanto despreza e das reais necessidades da população, pede em cadeia nacional o fim do “confinamento em massa” e a “volta à normalidade”, como se a pandemia pudesse ser debelada por decreto. Por último (mas certamente não por fim), exaspera-se com o governador de São Paulo, João Dória, que criticara seu pronunciamento à nação, dizendo que o mesmo “não é exemplo para ninguém” e que lhe “virou às costas” após apropriar-se de seu nome para vencer o pleito paulista. Sem afeto e focado em interesses particulares, Bolsonaro diminui sua estatura no momento em que deveria agigantar-se, desperdiçando a franca oportunidade de exercer uma liderança cooperativa, ética e responsável. Imaturo, adota uma conduta belicosa, egoísta e incompatível com seu cargo, conduta essa que está sendo duramente criticada em nível doméstico e internacional.

Mas o isolacionismo tóxico de Bolsonaro, para muitos atávico, parece contagioso. No Rio de Janeiro, onde a falta de cooperação e empatia entre governador e presidente apartam os recursos federais da população do estado, os governos Witzel (estadual) e Crivella (municipal) parecem comungar do mesmo egoísmo cego, tendo como razão ulterior as eleições de outubro. Sem atuação conjunta ou estruturas de concertação política, esses grandes mandatários batem cabeça quanto à necessidade do isolamento social, solidário, necessário no combate ao vírus. Assim, enquanto Crivella manifesta a disposição de afrouxar as medidas restritivas impostas aos agentes econômicos, Witzel caminha na direção oposta, preparando ações que desautorizam o alcaide. O choque dessas posições atordoa e desorienta a população, encurralada entre o temor da doença e os efeitos socioeconômicos que já se fazem sentir.  Vê-se, portanto, em uma linha que vai do global ao local, que os donos do poder se apartam das necessidades sociais e, isolados em seus interesses pessoais ou de classe, vivenciam uma cegueira mórbida, ainda mais grave do que a trazida à lume por Saramago. Oxalá que as forças vivas da sociedade civil, instituições de ensino, associações, artistas, intelectuais e outras lideranças possam evitar que a cegueira metaforizada pela literatura signifique a morte de milhares de cidadãos que vivem sob o domínio de líderes necrófilos, arrivistas, indiferentes à dor e ao mal que os cercam.

 




 







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